terça-feira, 11 de novembro de 2014

No mundo dos que não sabem e que dizem o disparate é rei, a piada é rainha e traz debaixo do manto um par de filhos de igual delicadeza. No mundo dos que não sabem e que dizem reina a liberdade que, à noite, muda a forma e pisa o risco esbatido da liberdade dos outros. No mundo dos que não sabem, dizem-se coisas porque sim, porque é um direito. E não se sabe, usa-se a liberdade porque se pode, porque se é dono dela. No mundo dos que não sabem e que dizem não se olha para o lado, não importa a ferida que pisar o risco dos outros deixa. Não importa. O problema do mundo dos que não sabem é que, mesmo assim, dizem!

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Procurem-me na multidão!

Procurem-me pela essência singular, pelo espírito desassossegado, pelo sorriso destemido. Procurem-me pela vontade de quebrar barreiras, de fugir sem olhar para trás, de largar. Procurem-me porque sou diferente. Ou não me procurem. Procurem-me ou deixem-me ser levada pela multidão de passos mecanizados, pela segurança da corrente que é tão forte que não sei escapar. Vejo noites caírem-me aos pés enquanto o peso dos meus sapatos se torna mais e mais insuportável. Procurem-me! Os meus olhos já não aguentam separar-se de outros que, de mãos dadas e sorriso rasgado, rompem a multidão na direção oposta. Procurem-me! A multidão já encolheu demais e já não sei caminhar nos meus passos. Procurem-me ou não me procurem. Acabem com esta ilusão de ser diferente quando sou mais um exemplar da mesma serie de tantos outros. Procurem-me! Por não ter uma essência singular, pelo espírito desassossegado que não sabe mais do que se resignar. Procurem-me porque sou igual. Ou não me procurem!

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Recordar os sítios por onde passamos, onde fomos plenos e nos conhecemos por dentro deixa na boca um gosto agridoce, uma sensação de peito cheio de melancolia e uma vontade imensa de ter um botão de teletransporte que nos devolva aos lugares. Sabe a pouco recordar. Como sabem a pouco os dias em que nos deixamos perder em calçadas desconhecidas, entre jardins e nomes de ruas que nunca mais nos irão largar. Sabem a pouco os minutos que passamos a olhar o que nos rodeia na esperança de deixar gravados na retina os detalhes que máquina nenhuma guarda por nós. E sabe a pouco a recordação da terra quente que antes tivemos debaixo dos pés, da água gelada que nos irritou a garganta numa tarde de verão ao por-do-sol, do cheiro a alecrim. O sabor agridoce que deixa em nós é um vicio que nos consome os dias, que nos faz conta-los e dar-lhes sentido. É uma dependência, uma obsessão que nos alimenta ou se alimenta de nós e que mais do que nos nos puxar para os lugares que já são nossos, nos empurra para aqueles que ainda vão ser.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Pedir

Já não peço desejos. No natal, no aniversário ou nas banais situações em que uma pestana nos cai na bochecha e alguém nos pressiona a pedir o que quer que seja. Já não peço. Pedir custa-me, dá-me suores frios e dores no estômago. Limito-me a fechar os olhos por uns segundos, esboçar um sorriso e não pensar em nada. Ficar, só. Aproveitar aquele pequeno instante que o tempo guardou para mim mesmo antes de abrir os olhos, mesmo antes de voltar a encarar o sorriso de quem tenho à minha frente e que mesmo que eu não o faça, pede desejos por mim.Esse tempo que toda a gente fala. De como nos sobra, do quanto nos falta. Esse tempo que é tudo, que cura tudo e que desaparece na fragilidade de um instante. Pedir é desperdiçar o tempo que não temos, perder o sabor adocicado das coisas que nos traz sem aviso. Já não peço!

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Há dias que estão destinados a ser cinzentos. Podem passar anos camuflados de cores, de sol, de experiências e momentos felizes que haverá sempre um dia em que se vestem de um cinzento que nunca mais conseguiremos arrancar de nós. Nada mais restará se não a lembrança do que mais queremos esquecer. Podem voltar a tentar enche-los de cores, de momentos alegres mas os dias cinzentos vão ser assim para sempre, vão ser dias em que vamos sempre ver a preto e branco, vão ser sempre lembrados como os dias em que nos quebraram ao meio.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Deixar

Sempre tive uma mente muito livre e sempre soube que, muitas vezes, o turbilhão dentro da minha cabeça não se limita à realidade. Não é estranho, por isso, que me aconteça, às vezes, ter dificuldade em perceber se o pensamento que tenho em determinado momento é algo que li, que alguém me disse ou simplesmente obra do lado mais rebelde da minha mente. Há muito que lido com uma questão que se encaixa nesse dilema mas que, mesmo sem saber de onde vem, não deixa de me incomodar.

O que acontece quando morremos é uma incógnita que vive há anos, que é alimentada por muitos e desvalorizada por outros. Fora de todas essas dúvidas, que se dissesse não ter estaria a mentir, existe outra questão associada que me faz pensar muitas vezes. Passamos a vida numa tentativa desenfreada de fazer a diferença, de deixar uma marca, de fazer com que se lembrem de nós quando não houver réstia de matéria daquilo que fomos. Nem sempre conseguimos, obviamente, e para 90% de nós, quando tiver passado um século da nossa morte não passaremos de nomes desconhecidos em placas de granito num cemitério que poderá já nem ter localização conhecida. Mas ainda assim tentamos. Evitamos pensar que possamos falhar e procuramos aí dar um sentido à única vida que conhecemos.

Sou assim, também. Quando decidi ser jornalista e me ensinaram o peso do caso Watergate ficou até hoje, na parte de trás da minha cabeça, uma ideia de que, quem sabe, um dia, também eu pudesse contribuir para uma qualquer mudança no mundo, nem que fosse na vida de uma só pessoa. Hoje, numa altura em que muito se fala de guerras, de bombardeamentos, de decapitações, de mortes de inocentes a troco de muito pouco tenho pensado mais no que me leva ao ponto essencial deste texto.

Custa-me que muitos de nós passem a vida a alcançar grandes feitos e, por circunstâncias que não podem controlar, a forma como morreram seja, a partir daí, tudo o que restará deles. Nas ruas, nas conversas de café, quem morre por causa de uma doença que não conseguiu vencer será sempre o rosto da doença. Quem conheceu muitos dos que a guerra matou irá vê-los sempre da mesma maneira e eles nunca deixarão de ser os que morreram às mãos da guerra. Quando perguntarem às pessoas nas ruas o que sabem da vida dos jornalistas decapitados, muitos deles não terão nada mais a dizer a não ser a forma como foram mortos.


É injusto e redutor que, em muitos casos, a nossa mente se feche para tudo o que cada um deles foi, tudo o que fez, tudo o que viveu e se limite a guardar para sempre a forma como morreu. Fazê-lo é tirar o sentido que tentamos dar à vida, esquecer 99,9% do que fizemos dela. Quando pensamos, tantas vezes, que queremos ser lembrados, deixar uma marca, pensamos sempre que será por termos feito algo incrivelmente bom. Há pessoas que vão ser recordadas para sempre, é verdade. Custa-me é que, às vezes, seja pelos motivos que todos nós esperamos não ser.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O mundo devia ser sempre assim: uma timeline a meio gás que nos dá os momentos que já não tínhamos, o tempo que deixamos de reconhecer e nos devolve aos que, sendo nossos, nos vão perdendo no meio da correria dos dias comuns.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

limbo

Andei tempo de mais a deambular pelo Limbo, a tentar equilibrar-me numa corda desastradamente bamba sobre o mais profundo dos precipícios enquanto tentava decidir se o meu passo seguinte seria para a frente ou para trás.

A complexidade das pessoas deixa-me perdida, às vezes. E por pessoas quero dizer eu, também. Não entendo o que nos muda os olhos, o que nos muda os sonhos, o que nos faz perde-los. Não entendo como podemos passar parte da vida agarrados ao que supostamente sempre quisemos e, num piscar de olhos, perceber que não queremos mais. Sou eu que me perco, na realidade. Não são as pessoas, não é a sua complexidade, sou eu. Sou eu e o meu espírito disperso que nunca sabe muito bem para onde se voltar. Sou eu. Que ando em círculos quando a ideia de um caminho em linha reta me assusta, que me fecho a sete chaves sem perceber que estou a fechar o pior comigo. O pior de mim sou eu. Que assim que realizei os sonhos que construí toda a vida me senti mais perdida que feliz. Sou eu. Que tento insistentemente tirar o barco a remos do lugar e não o vejo mover-se. Sou eu. Que procuro objetivos nos lugares errados e que, por não os encontrar, deambulo num limbo que toma conta de mim, me muda e faz o pior de mim ser tudo o que eu sou.

Já não sou. Vejo uma uma corda menos bamba, agora, uma distância menos longa, um precipício menos assustador. E, na realidade, tudo o que consegui foi recuperar o equilíbrio. O resto começa agora.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Negar

De todas as coisas que devíamos saber de nós, há umas quantas que teimamos ignorar mesmo quando tudo nos envia para outra direção. Negar o que, à partida, desconhecemos é uma dessas coisas. Podemos, do mais alto da nossa teimosia, cara amarrada e sobrolho franzido fazer o que dizemos não gostar  sem conhecer em nome de um orgulho que achamos ferido. A vida trata de nos fazer tropeçar e o tempo que leva a pôr-nos no lugar parece uma ligeira fracção de segundos pensada para nós mesmo antes de sermos nós. No pequeno instante em que sentimos os pulmões recuperarem de uma inspiração profunda e se prepararem para jorrar o excesso de ar que temos no peito percebemos que não foi só ar que inalamos. Foi o orgulho estúpido também, a negação. E expelimo-lo de nós como se de mais uma partícula de dióxido de carbono se tratasse. Se há algo que a vida nos faz sempre que teimamos ignorar o que já devíamos saber de nós é trazer-nos de volta, mostrar-nos um caminho que já devíamos saber de cor mas que teimamos em não escolher, dizer-nos que, às vezes, o que de melhor nos acontece está no que insistimos negar.
Às vezes, o melhor é deixarmo-nos ir, o mais fácil é acreditar naquilo que ouvimos, no que lemos ou no que a imaginação nos disse vezes sem conta. Que há momentos em que, sem darmos conta, o melhor de nós se cruza com o de alguém e nos prende como se de uma linha invisível se tratasse. Como se um pedacinho de algodão deixasse as nuvens para nos manter juntos, nos fazer uns dos outros e nos enlaçar com sentimentos de familiaridade que nem conseguimos entender. Às vezes, o melhor é deixarmo-nos ir, o mais fácil é acreditar que o universo nos empurra para determinadas pessoas quando os nossos caminhos ainda não conheceram a mesma rua. E no final, negar não muda nada, não adianta nada. Ou muda. Adia o que nos faz bem, arrasta-nos pelo engano e de todas as coisas que devíamos saber de nós, aquilo que nos faz feliz é a que devíamos conhecer melhor.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Há uma altura na vida de, calculo, toda a gente em que não se consegue evitar questionar. E por questionar quero mesmo dizer colocar entre 50 a 90% da matéria de que somos feitos em causa. Se me perguntarem se sou feliz, a resposta é 'sim, sou'. Se me perguntarem se podia ser mais, claro. É como quando nos perguntam se gostamos de uma refeição. A resposta, genericamente, até pode ser sim mas se insistirem muito somos bem capazes de deixar escapar que a salada até tinha uma pitada de sal a mais. A felicidade também é isto, estar bem com o que temos, na generalidade, e ter noção que alguma especificidade podia ser melhorada (não pode sempre?).
Todos nós questionamos, em determinado ponto da nossa vida, o que poderíamos fazer diferente ou, pelo menos, se iria valer a pena arriscar pela diferença. É inevitável. Assim como é inevitável que nos falte sempre algo. Eu estou nessa fase, ou mais ou menos. Para já a questão não é bem se arrisco o caminho da esquerda ou da direita. Para já é mais perceber para onde raio vou abrir um caminho para ter como escolher. 

sexta-feira, 18 de julho de 2014

O que foi de mim neste tempo (Parte IV)
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Terça-feira, 6 de Maio de 2014

Diz quem sabe que todos os escritores passam por bloqueios, uma vez ou outra. Que embora sejam fases de extrema frustração e desalento acabam por dar lugar a uma explosão de ideias e inspiração que faz valer todo o tempo que o bloqueio roubou. Eu, que não tenho a pretensão de me achar escritora e que acredito que a única razão que leva meio mundo a publicar livros é o facto de, eles próprios, lerem muito pouco, escrevo só. Passo o dia nisso, aliás, mas escritora não sou. E talvez por isso não me cause estranheza ter um bloqueio que se alastra há mais meses do que consigo contar. Se fosse escritora, sentar-me-ia numa esplanada numa tarde solarenga. Um único café na frente e o sol como companhia. Se eu fosse escritora a inspiração viria, com certeza, com o vento e o bloqueio seria lavado com as borras do café. Não sou. É pena, tenho pena. Escrever faz-me falta como do pão para a boca. Não a escrita de todos os dias, a de cá de dentro, que lava, purifica, desintoxica. E da falta que me faz sobra só um bloqueio que parece infinito e que não sei desatar. Mas também, que importa isso? Eu nem sequer quero ser escritora.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

O que foi de mim neste tempo (Parte III)
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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Gosto de História desde o tempo em que me falaram do Tratado de Tordesilhas, do tempo em que me deslumbrei com os Deuses do Olimpo, da altura em que me explicaram a crise do século XIV e me apresentaram os Descobrimentos. A II Guerra sempre foi o meu tema favorito, no entanto. Pela proximidade temporal ou pela simples curiosidade, sempre me atraiu.

Devia ter os meus 13 anos quando uma professora de então nos arrastou, a mim e à minha turma, até à pequena mediateca da escola e nos empurrou garganta abaixo um filme que ficou lá entalado uns bons pares de dias. 'A vida é Bela' é, até hoje, um dos meus filmes de eleição. Lembro-me que quando as luzes voltaram a acender-se e os créditos iam passando no ecran gigante, muitos colegas limpavam timidamente os olhos. Eu não reagi mas naquele momento soube que queria descobrir mais.

Depois de Dachau, fui a Auschwitz, um dos sítios com mais simbolismo no mundo inteiro e que, desde aquele dia na mediateca, quis conhecer. Não foi como imaginei. À medida que percorria os caminhos de terra entre os diversos barracões tentava, com toda a força, sentir alguma coisa. Não consegui, não consegui sequer pensar. Auschwitz suga cada pedaço da nossa alma e asfixia-a, deixa-a cinzenta. Absorve as reacções, o movimento do corpo, o brilho dos olhares. Visitar Auschwitz deixou-me como naquele dia na mediateca, sem reacção.

Os degraus das escadas entre os diversos andares dos barracões estão completamente gastos e perco o fôlego só de imaginar todos os passos que por ali passaram. Levam-nos até uma vitrine repleta de latas vazias de gás e nada faz sentido.Não fazem sentido as roupas de bebés meias rasgadas, não faz sentido o amontoado de óculos, não faz sentido o enorme monte de malas que ainda têm os nomes cravados. Não faz sentido. E não fazem sentido as milhares de escovas de dentes guardadas, o cabelo que, às toneladas, quase chega ao tecto. Vêem-se tranças, ainda feitas, no meio de fios e fios de cabelo que alguém, cruelmente, armazenou. Mais uns degraus e estamos num corredor estreito, ladeado por vidros. São sapatos. Grandes, pequenos, minúsculos. De salto, rasos, de homem, de mulher. É a imagem que guardo mais nitidamente: sapatos. Um par de cada pessoa, armazenados em ambos os lados do enorme corredor. Até ao tecto. Não faz sentido!

Lembro-me de uma cena do filme em que o protagonista é levado para um beco no campo. Executado. Levaram-nos lá e quase consegui ver o sofrimento gravado nos muros. Vi ao meu lado, por mais que uma vez, pessoas esconderem o rosto nos lenços que iam retirando, discretamente, do bolso. Não chorei. Não por falta de vontade mas porque ali, todo o meu corpo secou, todos os poros se fecharam.

Enfiaram-nos num autocarro com destino à segunda parte do campo, Birkenau, no momento em que a chuva começou a cair. Foi assim que conheci pela primeira vez aqueles carris que tantas vezes vi em filmes, debaixo de uma chuva torrencial. Sem guarda-chuva e com a água a gelar-me os ossos conheci Birkenau. Grande parte do campo foi destruído pelos nazis e o espaço tem agora uma paisagem verde de perder de vista. Fecho os olhos e lembro-me do cheiro a queimado que, ainda hoje, não sei se foi real ou uma partida da minha imaginação. A chuva ia ganhando mais intensidade. Os poucos barracões ainda de pé  servindo de abrigo. Lá dentro a temperatura era gélida e o ambiente húmido.Os locais onde os prisioneiros dormiam eram assustadoramente pequenos e sem condições. Ninguém devia passar por isto, ninguém devia fazer isto. Não faz sentido!

Não sei se alguma vez irei ser capaz de pisar outro campo de concentração, é demasiado. Sei, no entanto, que todos deviam visitar um, pelo menos uma vez na vida. Pôr os pés num lugar assim muda-nos, ensina-nos que não podemos aceitar que volte a acontecer. Depois de Auschwitz não voltei a ver 'A vida é bela', ainda não fui capaz!

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Eu já não sei escrever

O que foi de mim neste tempo (Parte II)
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quarta-feira, 13 de Novembro de 2013

Há qualquer coisa que se perde em nós quando passamos a fazer da escrita o nosso trabalho. É o cansaço de passar o dia numa escrita furacão, em busca de palavras mecanizadas que descrevam factos sem réstia de opinião ou a certeza de que quando usamos durante muito tempo as palavras, elas perdem o sentido e parecem vazias de significado. Há algo que se perde quando chegamos a casa e, de repente, aquela que costumava ser a única forma de alivio e catarse já não funciona mais. Chamem-lhe inspiração, concentração ou outra coisa qualquer mas há algo que se perde.

Tive um blog como este, um dia, há não muito tempo .No tempo em que as palavras diziam alguma coisa, em que contavam histórias e retiravam peso às almas eu costumava ter um blog como este. Ainda o tenho, fechado como um refúgio, agora só meu. Gosto de lê-lo, às vezes, como quem procura a ponta de uma meada que anda perdida não sei por onde, mas já não o alimento, ele não me alimenta a mim. Hoje, os meus pedaços são diferentes dos daquela época. Diferentes, sem rumo e desastrosamente emaranhados. Já não cabem no que eu fui um dia, vão cabendo aqui. Pelo menos até eu voltar a saber escrever.

terça-feira, 1 de julho de 2014

'Arbeit Macht Frei'

Porque voltar só faz sentido em pleno...
O que foi de mim neste tempo (Parte I).

 05 de junho de 2013

Dachau não é só um nome difícil de pronunciar, fruto do ‘c’ mudo que nos faz engolir uma golfada de ar de cada vez que o tentamos dizer. Dachau tem cravado em cada esquina os segredos de uma História que, de tão horrenda, parece ficção. Em dias cinzentos, Dachau parece mais pesada e o ar que se respira é quase escasso. Os primeiros passos nas pequenas pedras que se atropelam no chão são dolorosos. Parecem-me Xisto e juntam-se em grandes grãos que vão deixando um rasto de barulho à minha passagem.

‘Welcome to Dachau Concentration Camp‘

Sinto o coração cair e bater-me nos quadris. O estômago cola-se às costas e os meus pulmões parecem, subitamente, mais lentos. No lugar onde antes sabia ter o coração sinto, agora, uma dor aguda que nunca antes senti. Levam-nos pelo caminho que, muitos anos antes, milhares de prisioneiros percorreram em direção ao sítio que, muitos deles, nunca chegaram a abandonar.

O enorme portão gradeado tem uma única inscrição: “Arbeit Macht Frei”- “o trabalho liberta”. O espaço à minha frente é de uma dimensão quase indescritível. Ali formavam judeus, ciganos, homossexuais e tantos outros que a II Guerra aprisionou, torturou, matou. Bombardeiam-nos imagens de pessoas onde já não há nada entre o osso e a pele. Pessoas. Em Dachau é frio, muito frio. Seca-nos o corpo, congela-nos a alma e, sem darmos conta, a apatia toma conta de nós.

Dachau foi o primeiro campo de concentração mandado construir por Hitler, ainda em 1933. Era um exemplo para todos os outros, um exemplo de violência. Entrar em Dachau, hoje, é perder a capacidade de falar, de respirar e os únicos sorrisos que conseguimos esboçar são carregados de uma tristeza quase insuportável.

Dentro do grande edifício onde antes faziam triagem de prisioneiros, onde tomavam banho, onde cozinhavam, onde eram mortos alinham-se cartazes de propaganda, imagens de corpos amontoados, quase até ao teto, em grandes salas. As paredes têm ainda uma mistura de cores, vivências e sofrimento que não consigo descrever. E são suaves, uma suavidade brilhante ao toque. Lemos nomes, nomes e mais nomes que não conseguimos decorar mas que deveríamos conseguir. Mostram-nos documentos, cartas que escreviam, pinturas que alinhavavam. Mostram-nos óculos, livros, pratos, colheres, roupa. Uma roupa tão fina que seria incapaz de proteger dos dias cinzentos de Dachau.

Contam-nos histórias atrozes de uma violência que ninguém deveria ser capaz de infligir. O ambiente em Dachau é pesado. Pesa em cada poro das nossas entranhas, reduz-nos a uma mediocridade sem sentido e eu tenho dificuldade em mexer-me. Num campo de concentração, tudo o que nos ensinaram na escola sobre os nazis, os campos, os crematórios e as câmaras de gás parece pouco, leviano. Na escola não nos dizem que os campos de concentração vão ser sempre negros, mesmo que os vejamos a cores; não nos levam a grandes salas, agora vazias e com paredes marcadas, onde antes homens amontoavam restos de vidas de outros. Falam-nos de câmaras de gás e nós não percebemos. Não percebemos até pisarmos a escuridão de uma, até sentirmos que, lá dentro, as forças quase nos falham.

Em Dachau morreram milhares de pessoas e é impossível visitar um sítio assim sem sentir que, também nós, morremos um pouco ali. A 29 de abril de 1945 as tropas dos aliados libertaram os milhares de prisioneiros de Dachau. Eu conheci-o no dia em que celebravam o 68º aniversário da libertação e a única coisa que tenho a certeza sempre que fecho os olhos é que ninguém permanece igual depois de pisar um campo de concentração. Ninguém, não pode!
 

domingo, 29 de junho de 2014

Um ano e quatro meses

A última vez que escrevi aqui foi há, sensivelmente, um ano e quatro meses. Fechei-o uns tempos depois por não me identificar mais com algumas das coisas que aqui construí, por não ser capaz de voltar a escrever da forma que tantas vezes fiz. O refúgio deixou de o ser quando sempre que abria a janela em que agora volto a escrevinhar encontrava um buraco negro que me sugava o sentido das coisas e me deixava a mente completamente vazia. Não digo que o tenha feito para sempre mas a verdade é que ainda não consegui recuperar essa parte de mim.
Um ano e quatro meses foi o tempo que me levou a perceber que o blog mudou. Antes já nem blog era, limitava-se a pairar na internet como um depósito de pensamentos que já não tenho, dos quais já nem entendo o significado. O blog mudou porque eu mudei. Porque Refúgio há muito deixou de ser a definição deste espaço, de mim. Hoje eu sou mais pedaços de várias formas, de muitos tamanhos. Pedaços que mesmo admitindo que podem vir a formar um todo, não tenho certeza que o façam.
Quando percebi que a minha capacidade de agrupar palavras em sentidos se estava a esvair e a deixar o blog definhar, fechei-o. Uns meses depois, na tentativa de recuperar algo em mim que, agora sei, já não existe, criei outro. Esqueci-me, porventura, da minha dificuldade em deixar coisas para trás, de as largar, de as esquecer. Voltei a ler muitos dos textos que aqui fui postando desde 2007. Ri-me, confesso, com alguns, interroguei-me sobre o sentido de outros e fiquei, modéstia à parte, completamente rendida a outros tantos.
O 'eu' que sou hoje já não quer e nem sabe escrever assim, só não consegue deixa-los para trás. O 'eu' que sou hoje é, também, por causa deles e eu não consigo... O blog mudou porque a melhor forma de seguir em frente é perceber que mudamos, aceitar a mudança e aprender a lidar com ela. Isto sou eu a aprender a lidar comigo, a tentar aglutinar pedaços e preencher o puzzle em que me tornei. Não prometo escrever muito já que essa é hoje, ironicamente, uma das minhas maiores dificuldades. Será o que eu sou. Alice é só o meu nome favorito!