quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O António

"E Então a família?"

Era assim todas as vezes que ia à mercearia. O senhor Manuel, já de oitenta anos, conhecia o bairro inteiro, alguns desde criança. Tratava-os pelo primeiro nome, sabia os gostos de cada um, preocupava-se.

"Está tudo bem, graças a Deus. A Marianinha já vai este ano para a escola e o Miguel está no quinto ano."

"Já me tinha esquecido como eles crescem rápido. E o António?"

Ela arrumou as compras apressadamente e, já na porta, murmurou um inaudível "está igual" antes de se despedir. Lá fora chovia. Chovia desesperadamente. Ainda só tinha dado dois passos e já estava encharcada. Correu para o único sítio onde não havia edifícios, onde não havia nada. Largou o saco das compras e chorou até lhe secarem as entranhas, gritou até lhe faltar a voz.

E ali, onde ninguém a podia ouvir, onde as lágrimas se (con)fundiam com a chuva e os gritos eram abafados pela tempestade pensou na Marianinha que não podia mais ver aquilo, no Miguel, cada vez mais revoltado.

Ali, onde ninguém a ouvia, gritou, chorou e pensou no António. Jurou que nunca mais o ia perdoar, que nunca mais ia esconder as marcas de algo que ele justificava com amor. Ali, decidiu que nunca mais o ia proteger, porque por mais desculpas que pedisse, o António ia ser sempre igual.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Doce Lima

O autocarro parecia fazer de propósito para se atrasar. Tu, do meu lado direito, ias agarrando o meu braço, fazendo festinhas na minha mão, comungando de mim o mesmo conforto que me davas a beber. As senhoras, umas mais velhas que outras, iam esperando, limpando o suor da cara e só nós pareciamos não nos importar com o atraso. Desviavas-te sempre que mais uma senhora se aproximava para confirmar a hora do autocarro. Eu vou contigo, vais ser a minha coragem e eu prometo, em troca, cuidar de ti. Vou, porque preciso encontrar o que não conheço, viver o que não vivi, sentir o que nunca achei, conhecer o que nunca vi. Vou, porque te levo comigo, porque nunca mais quero ver o teu olhar brilhante seguir-me e sussurar-me um gosto muito de ti, enquanto o teu corpo, imóvel, vê o meu afastar-se. Vou, porque não quero mais responder-te com um apressado , como quem corre e olha o relógio sem tempo para perceber o significado. Vou porque mesmo que o autocarro se atrase todos os dias nunca vai ser o suficiente para te fazer perceber o quanto eu (também) Gosto de ti.