sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Pergunto-me, às vezes, se algum dia serei plenamente normal, comum. O normal culto, serio, interessante, cativante. Pergunto-me, outras tantas, se esta loucura que trago algum dia vai sumir, desaparecer, dar lugar a um eu de olhar carrancudo, voz de respeito, de postura muito direita e lábios selados. Nem sempre me acho boa pessoa. Nem sempre me sinto melhor. Às vezes, confesso, penso como seria se fosse mais como a Ana, como a Teresa, como a Maria, como elas. Calada, parada, focada. Pergunto-me, não poucas vezes, se será normal esta loucura, se será normal ter consciência dela e deixa-la existir. Se não risse demasiado, se não brincasse demasiado, se não exteriorizasse demasiado, se não falasse demasiado. Devia mudar a maneira de pensar, também. Ser mais como a Ana, a Teresa, a Maria. Deixar o que gosto de lado. O que importa, afinal, o que gosto quando posso ter o que quero. Ser mais como elas.
Há alturas, também, em que penso que esta loucura é o que me dá a sanidade. Que é por rir demasiado que encaro os problemas com olhos diferentes. Que é por brincar demasiado que me esqueço que nem sempre me apetece rir, que é por exteriorizar demasiado umas coisas que consigo guardar outras só para mim, que é por falar demasiado que me sinto, quase sempre, leve.
E depois volto a perguntar-me se algum dia serei plenamente normal, se algum dia serei como a Ana, a Teresa, a Maria, se algum dia terei a sorte que elas têm. Volto a perguntar-me se algum dia serei como elas. É que mesmo que eu lute mais e encare melhor os problemas com a minha loucura, ela não me serve de nada  se a Ana, a Teresa e a Maria conseguirem tudo e eu não. 

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Sempre tive muita imaginação II: A Profissão

"Eu quando crescer quero ser farmacêutica, porque eu gosto muito de mexer nos remédios, embora não mexa. Desde pequena que eu quero ser farmacêutica, eu adoro essa profissão. Desde pequena que eu quero ser farmacêutica mas também já pensei noutras profissões, mas não gosto de nenhuma delas, só esta. Gosto de estar ao balcão a aviar os clientes."

Elsa Sofia, 1997

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Sempre tive muita imaginação: "o que pensas da televisão?"

"A televisão é um meio de comunicação que as pessoas gostam de estar a comer um saco de pipocas e a ver. Eu acho que a televisão é boa para toda a gente, só que ela tem um defeito: às vezes as pessoas querem sair de casa e não podem porque vai dar alguma coisa que elas não podem perder como por exemplo: a telenovela, o Agora ou Nunca, etc.
Quando a televisão não existia as pessoas no fim de jantar iam ao cinema, ao teatro, à praia dar uma volta mas agora as pessoas preferem ficar em casa a ver televisão em vez de fazer essas coisas todas.
É isso que eu acho da televisão"

Elsa Sofia, 1997

terça-feira, 11 de outubro de 2011

João

Saiu de casa cedo, o João. Atrasado, como de costume, não disse bom dia, não leu o jornal, não tomou o pequeno-almoço. Saiu a correr, um monte de papéis atafulhados no braço esquerdo, o telemóvel, as chaves do carro, de casa, a pasta com o portátil no braço direito. Era assim todos os dias: não ouvia o despertador tocar, não se conseguia levantar, saia a correr. Tinha adrenalina nas veias, queria fazer tudo intensamente, rapidamente, perfeitamente. À noite voltava com as olheiras escondidas nos óculos de massa, uma pilha de papéis ainda maior debaixo do braço esquerdo, o telemóvel, as chaves do carro, de casa e a pasta do portátil no braço direito. Não conseguia dormir. Passava horas a olhar o tecto, a pensar, tentava manter os olhos abertos o máximo tempo possível na esperança de conseguir o efeito contrario. Era adrenalina a mais, trabalho a mais, pensamento a mais. Nada à volta estava preenchido. A cozinha tinha um ou dois armários que nem costumava usar, na sala pairava um único sofá, dos anos 80, completamente rasgado e cheio de papéis e a cama tinha ainda um lugar vago. "Quando é que te casas e tomas juízo, rapaz", dizia-lhe a mãe, de vez em quando. Não se importava, sabia que a mãe não ia entender que era feliz assim, que só queria conseguir dormir para não sair de casa atrasado. Para ter coragem de dizer bom dia sempre que se cruzava com Ela no vão de escadas do primeiro andar para, quem sabe, ter tempo de a convidar para o pequeno-almoço.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Sinto o cheiro suave a morango. A vela perfumada delicadamente colocada na cabeceira emana uma luz quente que me mantem acordada. De todas as pessoas, sou a que mais difere de mim.  Não sou como os outros, nunca fui. E hoje tenho dúvidas que ainda seja como era. Sou diferente de mim, vejo com os mesmo olhos, mas com um olhar diferente, penso com a mesma cabeça mas de forma mais complicada, não sinto como antes, não falo como antes, não penso no que era antes. O cheiro suave invade-me os sentidos, uma mão cheia de recordações percorre a minha mente e não sou capaz de ignorar o que já fui e que não sou. Só por hoje, enquanto a luz permanecer quente, enquanto houver perfume de morango, vou recostar-me na almofada e deixar que a nostalgia me leve para onde nunca vou voltar. Só por hoje.