Sempre tive uma mente muito livre e sempre soube que, muitas vezes, o
turbilhão dentro da minha cabeça não se limita à realidade. Não é estranho, por
isso, que me aconteça, às vezes, ter dificuldade em perceber se o pensamento
que tenho em determinado momento é algo que li, que alguém me disse ou
simplesmente obra do lado mais rebelde da minha mente. Há muito que lido com
uma questão que se encaixa nesse dilema mas que, mesmo sem saber de onde vem,
não deixa de me incomodar.
O que acontece quando morremos é uma incógnita que vive há anos, que é
alimentada por muitos e desvalorizada por outros. Fora de todas essas dúvidas,
que se dissesse não ter estaria a mentir, existe outra questão associada que me
faz pensar muitas vezes. Passamos a vida numa tentativa desenfreada de fazer a
diferença, de deixar uma marca, de fazer com que se lembrem de nós quando não
houver réstia de matéria daquilo que fomos. Nem sempre conseguimos, obviamente,
e para 90% de nós, quando tiver passado um século da nossa morte não passaremos
de nomes desconhecidos em placas de granito num cemitério que poderá já nem ter
localização conhecida. Mas ainda assim tentamos. Evitamos pensar que possamos
falhar e procuramos aí dar um sentido à única vida que conhecemos.
Sou assim, também. Quando decidi ser jornalista e me ensinaram o peso do
caso Watergate ficou até hoje, na parte de trás da minha cabeça, uma ideia de
que, quem sabe, um dia, também eu pudesse contribuir para uma qualquer mudança
no mundo, nem que fosse na vida de uma só pessoa. Hoje, numa altura em que
muito se fala de guerras, de bombardeamentos, de decapitações, de mortes de
inocentes a troco de muito pouco tenho pensado mais no que me leva ao ponto
essencial deste texto.
Custa-me que muitos de nós passem a vida a alcançar grandes feitos e,
por circunstâncias que não podem controlar, a forma como morreram seja, a
partir daí, tudo o que restará deles. Nas ruas, nas conversas de café, quem
morre por causa de uma doença que não conseguiu vencer será sempre o rosto da
doença. Quem conheceu muitos dos que a guerra matou irá vê-los sempre da mesma
maneira e eles nunca deixarão de ser os que morreram às mãos da guerra. Quando
perguntarem às pessoas nas ruas o que sabem da vida dos jornalistas decapitados,
muitos deles não terão nada mais a dizer a não ser a forma como foram mortos.
É injusto e redutor que, em muitos casos, a nossa mente se feche para
tudo o que cada um deles foi, tudo o que fez, tudo o que viveu e se limite a
guardar para sempre a forma como morreu. Fazê-lo é tirar o sentido que tentamos
dar à vida, esquecer 99,9% do que fizemos dela. Quando pensamos, tantas vezes,
que queremos ser lembrados, deixar uma marca, pensamos sempre que será por
termos feito algo incrivelmente bom. Há pessoas que vão ser recordadas para
sempre, é verdade. Custa-me é que, às vezes, seja pelos motivos que todos nós esperamos
não ser.
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